sexta-feira, 7 de junho de 2013

O RELÓGIO


Representação do Relógio do Paço (Museu do Azulejo), Lisboa
Representação do Relógio do Paço da Ribeira (Museu do Azulejo), Lisboa
 Conhecemos poucas formas de utilização de O Relógio, de João Cabral de Melo Neto em situações de aprendizagem. Em uma delas, o poema é utilizado para discutir a dinâmica e a divisão do trabalho na Organização Clássica do Trabalho. A poesia é uma alternativa sensível, artística e criativa para tratar um tema sempre abordado  de forma muito  técnica. Através de O Relógio, é possível proporcionar um conhecimento e uma vivência da organização do trabalho de forma sensível e muito envolvente.

O RELÓGIO
                      
1. Ao redor da vida do homem
     há certas caixas de vidro,
    dentro das quais, como em jaula,
    se ouve palpitar um bicho.


    Se são jaulas não é certo;
    mais perto estão das gaiolas
    ao menos, pelo tamanho
    e quebradiço da forma.

    Umas vezes, tais gaiolas
    vão penduradas nos muros;
    outras vezes, mais privadas,
    vão num bolso, num dos pulsos.

    Mas onde esteja: a gaiola
    será de pássaro ou pássara:
    é alada a palpitação,
    a saltação que ela guarda;

    e de pássaro cantor,
    não pássaro de plumagem:
    pois delas se emite um canto
    de uma tal continuidade

    que continua cantando
    se deixa de ouvi-lo a gente:
    como a gente às vezes canta
    para sentir-se existente.

2.  O que eles cantam, se pássaros,
     é diferente de todos:
     cantam numa linha baixa,
     com voz de pássaro rouco;

     desconhecem as variantes
     e o estilo numeroso
     dos pássaros que sabemos,
     estejam presos ou soltos;

     têm sempre o mesmo compasso
     horizontal e monótono,
     e nunca, em nenhum momento,
     variam de repertório:

     dir-se-ia que não importa
     a nenhum ser escutado.
     Assim, que não são artistas
     nem artesãos, mas operários

     para quem tudo o que cantam
     é simplesmente trabalho,
     trabalho rotina, em série,
     impessoal, não assinado,

     de operário que executa
     seu martelo regular
     proibido (ou sem querer)
     do mínimo variar.

3.  A mão daquele martelo
     nunca muda de compasso.
     Mas tão igual sem fadiga,
     mal deve ser de operário;

     ela é por demais precisa
     para não ser mão de máquina,
     e máquina independente
     de operação operária.

     De máquina, mas movida
     por uma força qualquer
     que a move passando nela,
     regular, sem decrescer:

     quem sabe se algum monjolo
     ou antiga roda de água
     que vai rodando, passiva,
     graças a um fluído que a passa;

     que fluído é ninguém vê:
     da água não mostra os senões:
     além de igual, é contínuo,
     sem marés, sem estações.

     E porque tampouco cabe,
     por isso, pensar que é o vento,
     há de ser um outro fluído
     que a move: quem sabe, o tempo.

4.  Quando por algum motivo
     a roda de água se rompe,
     outra máquina se escuta:
     agora, de dentro do homem;

     outra máquina de dentro,
     imediata, a reveza,
     soando nas veias, no fundo
     de poça no corpo, imersa.

     Então se sente que o som
     da máquina, ora interior,
     nada possui de passivo,
     de roda de água: é motor;

     se descobre nele o afogo
     de quem, ao fazer, se esforça,
     e que ele, dentro, afinal,
     revela vontade própria,

     incapaz, agora, dentro,
     de ainda disfarçar que nasce
     daquela bomba motor
     (coração, noutra linguagem)

     que, sem nenhum coração,
     vive a esgotar, gota a gota,
     o que o homem, de reserva,
     possa ter na íntima poça.                                
                                                      João Cabral de Melo Neto, Antologia Poética, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1979, p.68                          

 Clique aqui para abrir a página Dinâmica com O Relógio. Ela faz parte da primeira sessão de aprendizagem da Estação de Trabalho de Administração e Organização, de uma versão alternativa do Programa de Educação para o Trabalho, desenvolvida pela Germinal Consultoria. A estação de trabalho utiliza o teatro como referência metodológica. O excerto, Cena VII, do Ato I, foi retirado do Manual do Instrutor. Lá, o poema é usado como roteiro para uma ação dramática. Esse uso da poesia é exemplar. Dramatizar um poema é uma forma de interpretá-lo e de perceber que, como texto simbólico que é, pode ser objeto de múltiplas interpretações.

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