Análise do estilo de Michelangelo
© Texto de João Werner
Técnica preferida: a talha em mármore
A talha também exige certos cuidados. O trabalho do desbaste deve ser realizado com batidas nos cinzéis de forma rítmica, isto é, cada batida da marreta no cinzel deve seguir uma cadência fixa. A razão disso é que cada batida realizada sobre a rocha cria ondas de reverberação que percorrem toda a pedra. Se as batidas não forem rítmicas, duas seqüências de reverberações em momentos distintos podem trincar a pedra internamente.
Finalmente, o acabamento era uma das mais desgastantes e penosas experiências do ato criativo. Todo desbaste final, sutil, deveria ser feito com a utilização de pedras abrasivas, lenta e progressivamente, eliminando toda marca de cinzel que houvesse ficado. Nos dias de hoje, utilizamo-nos de esmerilhadeiras e lixadeiras elétricas, o que facilita em muito tais atividades.
Tema
A figura masculina nua é o tema principal de Michelangelo. Estudos desenvolvidos sobre cadáveres ampliaram a já genial habilidade do artista em desenhar a anatomia perfeita de suas personagens. Até os últimos detalhes do corpo eram retratados sem que se perdesse a organicidade das figuras.
Mesmo quando a obra a ser realizada tinha um motivo pouco afeito ao nu, como a Sagrada Família (à esquerda), por exemplo, Michelangelo incluía a figura masculina nua. Para muitos críticos, inclusive, o torso de suas figuras detinha tão intensa expressividade que podia rivalizar com os rostos como fonte de atração da imaginação. (Na ilustração, A Sagrada Família com o Menino João Batista (Tondo Doni), c 1503, têmpera sobre papel, dia 120 cm, Galleria degli Uffizi, Florença)
Por outro lado, as figuras parecem ser gigantescas. São representadas em uma escala que amplia a dimensão relativa dos membros e do tronco em relação ao tamanho da cabeça. Considerando a técnica tradicional de estabelecer a proporção da altura do corpo em relação ao tamanho da cabeça, Michelangelo reduz a proporção relativa do tamanho da cabeça em relação ao corpo. Isto é, o corpo mede mais cabeças nas esculturas e pinturas de Michelangelo. Outro artista que utilizava-se desta (des)proporção era El Greco, com a diferença que em El Greco as figuras são mais esbeltas, esguias, ao contrário do maciço de um Moisés ou de uma Sibila do teto da Capela Sistina.
Tondo Doni
É a primeira pintura (que se conheça) de Michelangelo. Encomendada por Agnolo Doni, por motivo de seu casamento, foi pintada simultaneamente à criação do Davi. A Família é representada de maneira quase informal. Maria está à frente, ao que parece, lendo (o livro ainda está sobre seus joelhos), e volta-se, pois o Menino segura-lhe os cabelos, quer ir ao seu colo. Michelangelo dá, ao corpo da Virgem, formas musculosas, e exacerba a elasticidade do corpo do Menino. As figuras são modeladas como esculturas, de contornos firmes e bem delimitados. Ao fundo, um grupo de nus masculinos é de difícil interpretação, incomum neste tipo de cena.
Pietá
Michelangelo esculpiu esta cena ('Piedade') quando tinha 23 anos. Ao saber que um apreciador recusara-se a acreditar que alguém tão jovem pudesse esculpir obra de tal magnitude, Michelangelo talhou seu nome na faixa que atravessa o seio da Virgem. Foi a sua única escultura assinada. O tema da Mãe com seu Filho morto ao colo é um dos mais dramáticos da iconografia cristã.
A beleza trágica do grupo deriva de seu classicismo, onde se somam a angústia do momento com a serenidade da composição triangular, e especialmente na postura contida da Virgem. Há um clima de melancolia, de profundo pesar, mas sem o sofrimento que caracterizou inúmeras outras representações da mesma cena, feitas por outros artistas. Tecnicamente, o trabalho de talha do mármore é perfeito, o acabamento polido, até que a superfície branca da pedra parecesse translúcida. Contribuem para a qualidade da anatomia do corpo de Cristo os inúmeros estudos que Michelangelo realizou com cadáveres.
Davi
Michelangelo esculpiu esta obra quando tinha apenas 26 anos. O imenso bloco de mármore havia sido encomendado para que o escultor Duccio ali talhasse a figura de um profeta. Com o falecimento deste repentinamente, a pedra ficou à espera de outro escultor. Quando Michelangelo terminou a escultura, um grupo de artistas - entre os quais estavam Leonardo, Botticelli, Filippino Lippi e Perugino - foi indagar de Michelangelo onde deveria ficar a estátua. O mestre indicou a praça central de Florença. O povo da cidade, chocado com a nudez da figura, lapidou a estátua, em nome da moral.
Perfeita, tanto do ponto de vista técnico quanto anatômico, a obra se transformou num símbolo de Florença. Hoje, ela foi substituída na praça por uma cópia. Davi olha ao longe como se o combate com o gigante estivesse prestes a acontecer. A ausência da cabeça de Golias – algo comum em representações da mesma cena por outros artistas - concorda com esta interpretação. O rapaz está tenso, mas não angustiado. Seu ar desafiador mostra a 'ação em suspenso' que era característica das esculturas de Michelangelo.
Nos olhos pode-se ver uma das provas da imensa genialidade do mestre. Ele perfurou a região da pupila dos olhos em forma de (V), como um casco de cavalo, de maneira que quando a luz incide sobre os olhos transversalmente, ilumina mais a área ressaltada (o V), deixando na penumbra a região cavada. Isto dá um efeito extremamente realista aos olhos, que parecem brilhar com o espírito do Rei guerreiro.
Tumba de Júlio II
Foi chamada por Condivi (aluno e amigo de Michelangelo) de 'tragédia do túmulo', pois sua execução durou cerca de 32 anos e, do grandioso projeto original, restou 'apenas' o conhecido Moisés, apenas uma escultura secundária no projeto original. A idéia do papa era construir para si um monumento que lembrasse a magnificência dos túmulos da Roma antiga. Após ter passado 8 meses em Carrara, selecionando as pedras de mármore que fariam parte do projeto, Michelangelo vê seu contrato ser desfeito por Júlio II (segundo alguns, a conselho do enciumado Bramante). Os rompimentos e reatamentos dos contratos em torno a essa obra arrastaram-se, tornando-se um suplício para o artista durante quase toda a sua vida. Júlio II contratou-o para realizar outras obras, como uma colossal estátua em bronze, para ser erguida em Bolonha (da qual nada resta, pois foi destruída em uma guerra) e a pintura do teto da Capela Sistina, em Roma.
Moisés
Projetada inicialmente como uma das esculturas do túmulo do papa Júlio II, esta escultura tem tão grande realismo que, segundo a lenda, quando Michelangelo finalizou a obra golpeou-a no joelho com a marreta e gritou: 'Fala!'. A escultura revela um personagem grandioso, dono de uma potência de personalidade que os contemporâneos de Michelangelo chamavam 'terribilitá'. Ao mesmo tempo senhor de si, líder sensato, e ao mesmo tempo capaz de uma ira arrasadora.
Os chifres na cabeça de Moisés são referência a uma interpretação medieval do Livro do Êxodo (34, 29). Na vulgata, no período ‘Quando Moisés desceu do Sinai, seu rosto resplandecia,..., isto é, lançava raios’, a expressão 'raios' é traduzida no sentido próprio de chifres. Por isso, os artistas medievais representavam Moisés com um par de chifres. O chifre é o símbolo da eminência, da elevação, do poder.
Capela Sistina
As pinturas do teto da Capela Sistina foram encomendadas pelo papa Júlio II, e durou quatro anos a decoração dos 1000 metros quadrados. Quatro anos de uma relação conflituosa, mas não pouco criativa: Júlio II deixou de agar-lhe por quase um ano, dada a 'lentidão do trabalho', e chegou a agredir Michelangelo a golpes de bengala. Michelangelo foge de Roma, e o papa pede-lhe desculpas, pagando-lhe, o que o faz retornar aos trabalhos. (Na ilustração à direita, uma pequena amostra da complexidade das cenas retratadas e da composição da pintura do teto da Capela).
Nada disto impediu o artista de criar um dos mais impressionantes monumentos da fé católica. O conjunto das figuras e das cenas gira em torno ao Antigo Testamento. São nove cenas do Gênese, desde a criação do mundo até a embriaguez de Noé. A única exceção ao tema bíblico são as Sibilas, personagens advinhatórias da Grécia antiga. Todas as figuras habitam um cenário composto por uma simulação de elementos de arquitetura. Arcos, cornijas e colunas pintadas dividem as cenas e organizam cada narrativa.
A Criação de Adão
Uma das mais conhecidas (e reproduzidas) passagens das pinturas do teto da Capela Sistina. Deus é ativo, seu corpo tensionado tende em direção a Adão, apontando com a dádiva do espírito. Adão é passivo, está reclinado sobre a terra, sua mão esboça um gesto em direção ao Criador. O formato curvílineo de seu corpo é a exata contrapartida formal da curvatura do corpo de Deus. A anatomia dos corpos é perfeita, porém exagerada, criando um gigantismo de proporções, típico do artista.
Uma infinidade de sentimentos perpassam pelo rosto do extasiado Adão. Um misto de admiração e respeito, que amplificam a a sua passividade e impotência. Os olhos fixos no Criador aguardam com reverência o toque de Sua mão. Estas mãos são, ao lado da Última ceia de Leonardo, talvez a obra mais reproduzida da história da arte. Impressionante momento, Michelangelo soube plasmar, em um único ícone, toda a carga espiritual e expressiva da passagem bíblica. Deus ainda não tocou Adão, e este minúsculo espaço que existepara a concretização da existência da raça humana, hiato entre o ser e o não ser, concentra toda a energia do nosso anseio de existir.
O Juízo Final
Michelangelo inicia a pintura deste mural por volta de 1536 e o conclui em 1541, a pedido do papa Paulo III. Nesta época, um profundo pessimismo descia sobre a Europa, motivado pelas desavenças religiosas provocadas pelo nascente movimento protestante e pela Contra-Reforma. Embora detenha um impacto expressivo e espiritual intenso, a pintura foi minuciosamente planificada. Três estágios são segmentados. Um primeiro, mais elevado, onde estão o Cristo juiz e os eleitos, um segundo, intermediário, onde estão os anjos anunciando os acontecimentos, tocando, com fúria, suas trombetas. E um terceiro, inferior, onde estão as almas dos danados, e onde se iniciam os suplícios.
É a descrição de um momento terrível para o cristão. Cristo não é conciliador. Seu gesto, de mão espalmada para o alto, é imperioso na condenação dos pecadores. Nenhuma outra figura, com exceção de Maria, ousa aproximar-se e, mesmo ela, parece desviar os olhos da cena tremenda. Todos os santos apresentam os instrumentos com os quais foram supliciados, o que, na tradição iconográfica medieval, servia para identificá-los, mas, também, era uma comprovação da sua fé naquele momento e um testemunho de acusação no julgamento.
A representação do Salvador é totalmente iconoclasta. Michelangelo abandona um cânone da representação de Cristo como uma figura de barbas, algo comum, tanto nas pinturas anteriores como depois dele também. A representação da figura por Michelangelo lembra muito mais a de um deus grego, Apolo talvez. Jesus foi pintado por Michelangelo nú, sendo posteriormente considerado pagão e indecoroso, foi 'vestido'por um artista chamado Daniel Volterra.
A camada intermediária, além dos anjos com trombetas, apresenta uma série de almas que se elevam, amparadas pela ajuda dos eleitos, enquanto que outras decaem, arrastadas por figuras demoníacas. A última seção, inferior, apresenta tons esverdeados, pútridos, das carnes desfeitas daqueles que já se diluem na terra. À direita, um barco parte, carregado das almas perdidas. É uma obra lancinante, um testemunho da intensidade mística do texto bíblico, assim como da genialidade de seu criador.
A Barca de Caronte
Michelangelo baseou-se em grande parte na Divina Comédia de Dante para realizar seu afresco. Segundo a mitologia, Caronte era o condutor da barca que conduziria os pecadores ao inferno. Michelangelo retrata-o como Dante o fez, no momento em que golpeia os danados. Michelangelo deu forma humana aos demônios, mas introduziu também orelhas pontudas, garras e patas, relembrando as antigas tradições medievais.
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"Arti divina!!!!!!!!!!!!!!!!"
CLEIDE BORGES DE ABREU
Cuiabá - MT
3 de abril
"dvinamente humana1"
Maria
Florianópolis - SC
12 de março
"Obras maravilhosas que evidencia e da força a tese de que somos invadidos por almas oriundas de outros planetas que encarnam aqui, só vejo essa explicação... "
Benedito da Silva
Barretos - SP
11 de março
"Tudo acima descrito, vi pessoalmente em visitas que fiz ao Vaticano e Firenzze. O texto ajudou-me a ter melhor clareza do que vi, pois nada foi explicado com tantos detalhes, pelo guia. Ótimo! "
Maria
Minas Gerais
24 de novembro
"Obrigado, pelo seu texto, auxilia bastante. Parabéns pelo seu esforço, em colocar tantas informações!!!"
Anônimo
SC
3 de novembro
"Incrível!"
Monaliza
Piedade do Rio Grande - MG
31 de outubro
"nao achei nada pois queria sobre sua arquitetura e nao me ajudou em nada espero que da proxima vez me ajude cm trabalhos!!!!!!!!"
Luiz Roberto
Joinville - SC
25 de outubro
"EU FIQUEI SATISFEITA COM A BELEZA E COM A PERFEIÇAO DA ARTE INCRIVEL."
VANIA CDE CASTRO
ITABORAI - RJ
15 de outubro
"onde esta a obra moises"
Biancaa
São Paulo - SP
18 de setembro
"Olhando para essas artes, o que me impressiona mesmo é saber que foram criadas pelas mãos de um ser humano que fisicamente é igualzinho a todos nós."
Wilton Soares Pereira
Campina Grande - PB
17 de setembro
Veja mais: http://www.auladearte.com.br/historia_da_arte/michelangelo.htm#ixzz3WorMnoew
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