quinta-feira, 9 de abril de 2015

Análise do estilo de PICASSO

© Texto de João Werner

Picasso é o paradigma do artista moderno. Inventivo, desafiador, engajado em lutas sociais.
Todas as características que apontamos na arte de vanguarda do início do século, Picasso vai encarná-las com tal amplitude e intensidade como nenhum outro artista do século XX o fez.
Espírito irrequieto, não hesitou em abandonar uma fase extremamente candente e poética, como a denominada fase azul para lançar-se no experimentalismo geométrico do Cubismo.

Quando todos já haviam se inteirado das novas descobertas plásticas, retoma um estilo classicista totalmente incompreensível para quem não entende seu gênio libertário.
Por diversas vezes tomou partido em situações sociais que o afligiam. Usou dos pincéis como instrumento de denúncia, tanto durante a Guerra Civil espanhola, quando denunciou o bombardeio nazista sobre a cidade de Guernica, como quando pintou um protesto contra a guerra insana do ocidente contra a Coréia.

Fase azul

Os quadros da fase azul caracterizam-se pelo tom quase monocromático. As telas são realizadas em uma gama estreita de cores, variando em tons de azul e tons pastel. O tema é sempre a pobreza ou a morte. Os personagens são envolvidos por uma aura de solidão e desespero, os olhares são entristecidos, a tez pálida, os pés descalços.

Mendigos junto ao mar

A rudeza das superfícies não impede que toda ternura do artista pelos miseráveis extravasasse nesta pintura. Os tecidos rotos põem à mostra as anatomias esqueléticas, como nas costas da mulher, onde aparece a ossatura saliente. O frio congela os corpos e as almas. O azul profundo configura um ambiente melancólico devastador. (Na ilustração à direita, Mendigos junto ao mar (A Tragédia), 1903, óleo sobre madeira, National Gallery of Art, Washington).

A Vida

Esta pintura é inspirada no suicídio do pintor Casagemas, amigo de Picasso. Morto pela desilusão amorosa, Casagemas é retratado abraçado àquela que parece ter sido a causa de seu infortúnio, uma modelo que freqüentava o atelier de ambos, Germaine. Talvez Picasso quisesse garantir ao amigo o abraço da amada, ao menos na eternidade do imaginário da arte. (Na ilustração à esquerda, A vida, 1903, óleo sobre tela, Cleveland Museum of Art).

Fase rosa

A fase rosa é um retorno do artista à alegria da vida. Os tons azuis e a melancolia da fase anterior são amenizados pela introdução de um novo tema, os saltimbancos, assim como uma nova gama de cores, mais variada. Picasso vai explorar este tema em inúmeras situações, demonstrando seu apreço pela vida circense. Retrata famílias de acrobatas, mulheres com seus bebês em meio a animais do circo, meninos treinando malabarismo sobre bola, meninas adestrando cavalos. As cores são mais suaves, predominando os tons vermelhos muito pálidos, assim como o tom geral da pintura torna-se mais luminoso.

Retrato de Gertrude Stein

Este é um quadro de grande potência. Está a meio caminho entre a fase rosa e o cubismo. O cromatismo é comum a outras telas daquele período, mas as formas já prenunciam a abstração que está por vir. A pose da retratada - famosa escritora norte-americana e uma das mecenas do artista no início de sua carreira - denota sua forte personalidade. O corpo se inclina para a frente, em direção ao observador, como a querer sussurrar-lhe algo. O rosto, que Picasso transforma em uma máscara africana, é inquisidor e tem a boca severa e irônica. (Na ilustração à direita, Retrato de Gertrud Stein, 1906, óleo sobre tela, 100x81,3 cm, The Museum of Modern Art (MoMA)).

Cubismo

A primeira tela cubista é Demoiselles d'Avignon. A metamorfose das culturas, da cultura européia em cultura africana, vai concretizar-se de forma virulenta na Demoiselles. Retratando uma cena de meretrício, Picasso converte as personagens em verdadeiros ícones primitivos, anímicos. Como deusas da fertilidade tribais, as personagens tornam-se míticas pela mistura de aspectos antropomórficos com geometrismos típicos da arte primitiva.

Les demoiselles d'Avignon

Esta é considerada não apenas uma das obras-primas de Picasso como, também, a pintura que inicia o movimento Cubista (e, por que não, o modernismo também) nas artes. Representa uma cena de bordel na rua de Avignon, em Barcelona. O estilo agressivo da pintura é uma mescla da fase rosa de Picasso com a arte africana e oceânica, especialmente máscaras rituais. (Na ilustração à esquerda, Les demoiselles d'Avignon, 1907, 243,9x233,7 cm., óleo sobre tela, The Museum of Modern Art (MoMA)). Para ver mais detalhes desta pintura, clique aqui.
O que se observa na pintura é uma progressiva transformação do rosto das moças em máscaras. Enquanto as duas figuras do centro da composição mantém o caráter naturalista da representação, as duas que estão à direita já são autênticas deusas da fertilidade primitivas. Os detalhes da anatomia são eliminados em proveito da planificação das formas. é uma obra selvagem, rude, parece que talhada a machado. Contribui para este efeito a falta de modelagem entre as cores, que são aplicadas sem que haja modulação, suavização, entre uma e outra.
Também é nova a matéria que é ali representada. Blocos de arestas agudas, alguns translúcidos, rígidos como vidro. Outros corroídos, raspados, atritados entre si. Compositivamente, o conjunto se articula em torno à recorrência da forma de lua crescente que é repetida em várias partes da pintura. Assim é o formato do corpo da figura à direita, em baixo, acocorada. é o formato da fatia de melancia (ou melão?) na pequena natureza morta ao centro, em baixo. No próprio rosto desta figura, o nariz lembra também uma lua crescente. Esta pintura é um golpe violento contra o classicismo na arte européia. Depois das Demoiselles, a arte nunca mais foi igual à da tradição renascentista. é uma pintura que pretende muito (ou nada?), menos ser bela no sentido clássico do termo.

Cubismo analítico

O cubismo posterior, dito analítico, é bastante diferenciado deste cubismo africano inicial. Sob influência de Cézanne, Picasso e Braque vão ampliar o aspecto geométrico de suas obras, tornando os objetos e figuras cada vez mais segmentados por polígonos. A figura deixa de ser representada dentro dos cânones clássicos e passa a ser descrita em termos de uma multiplicidade de pequenas áreas que apenas sugerem as formas dos corpos. Picasso e Braque pretendiam estar fazendo obra realista e muitas teorias foram desenvolvidas pelos críticos para encontrar o realismo nas pinturas que produziam. Uma destas teorias é a que afirma que no Cubismo o objeto é representado a partir de diversos pontos de vista, por isto o aspecto caleidoscópio. Na verdade, ninguém nunca conseguiu provar esta tese, a que permanece apenas como uma curiosidade não comprovada.
O abstracionismo (e não realismo) era tão evidente no desenvolvimento do cubismo que os próprios autores em breve passaram a utilizar-se de fragmentos do mundo para tentar novamente ancorar as obras dentro de uma proposta realista. Surgiram as colagens de pedaços de jornal, retalhos de tecidos, rótulos de garrafas etc. Era como se os dois pintores pretendessem trazer o mundo para suas pinturas. Evitavam chegar à pura abstração, mais tarde realizada por Kandinsky, Malevich e Mondrian.

Moça com bandolim

Netsa pintura, a fragmentação da forma é levada a extremos. Toda a figura é descrita em termos de planos que se justapõem e interpenetram. Poucas linhas descrevem alguns aspectos da anatomia que mantém a reminiscência do objeto. Os volumes não se coadunam. (Na ilustração à direita, Moça com bandolim, (Fanny Tellier), 1910, 100,3x73,6 cm, óleo sobre tela, The Museum of Modern Art (MoMA)).

Natureza morta com cadeira de palha

Esta é, talvez, a primeira pintura cubista em que Picasso se utiliza de materiais reais fixados à tela. Inaugura toda uma fase nova do cubismo, a das colagens. A tela de palhinha ao fundo é uma material real, assim como a corda que rodeia o perímetro da composição. A sensação é a de uma inusitada incoerência entre a natureza morta abstrata, pintada, e o material real colado. Uma das razões de Picasso e Braque utilizarem-se deste recurso foi a sua recusa em levar a experiência cubista até as raias da pura abstração. Ambos os artistas tinham reservas contra o abstracionismo. Outra inovação interessante desta pintura é o resgate do formato oval da tela depintura. (Na ilustração à esquerda, Natureza morta com cadeira depalha, 1912, 29x37 cm, óleo e tela sobre tela, Musée Picasso, Paris).

Cubismo sintético

Entretanto, a qualidade das superfícies cubistas como elementos decorativos - dada a sua estilização - acabou por produzir o chamado cubismo sintético. Com a participação principalmente de Juan Gris, o cubismo chega a um estágio ornamental. Se anteriormente, no cubismo analítico, a austera gama de cores variava pouco entre o verde, o marrom e o ocre, no cubismo sintético vamos encontrar uma maior variedade tonal. O cromatismo variado é somado a uma maior valorização das superfícies pela sua própria qualidade estética, especialmente pelo destaque das texturas. O próprio desenvolvimento do cubismo desmente qualquer análise que aponte realismo em suas obras. Entre a descrição da realidade e a estética, Picasso ficou com a segunda.

Três músicos

Nesta fase do cubismo sintético, Picasso pinta as texturas dos materiais que antes colava sobre as telas. Ao invés de colagem, todas as diversas texturas vistas aqui são reproduzidas meticulosamente com o pincel. Os três músicos são totalmente convertidos em polígonos, cujas poucas reminiscências humanas são os círculos colocados a título de olhos e as pequeníssimas mãos que empunham os instrumentos. (Na ilustração à direita, Os três músicos (Os Músicos mascarados), 1921, 200,7x222,9 cm, óleo sobre tela, The Museum of Modern Art (MoMA)).
Como planos, eles se rearticulam no espaço pelo jogo de contigüidades e sobreposições. Em alguns pontos da tela, a cor recupera o contínuo de um corpo atravessado por outro, como no caso do músico de branco, atravessado que é pela mesa. O mesmo não ocorre com a área em azul acinzentado em torno dos olhos do músico do meio. A mesma área invade o músico de branco e perpassa por baixo da partitura à direita. Impossível saber a quem pertence esta forma.

Classicismo e abstracionismo

Surpreendentemente, após as incursões anteriores no abstracionismo, Picasso retorna (ou avança?) a uma fase clássica. Simultaneamente as pinturas que continuam desenvolvendo um estilo geométrico e ornamental, vai produzindo obras cuja inspiração parece advir do universo greco-romano. As figuras são maciças, de proporções que lembram a escala heróica de Michelangelo. São banhistas, pares e trios de mulheres nuas, jovens flautistas.
Dentro da tendência abstracionista, herdeira do cubismo sintético, Picasso produz diversas obras-primas, inclusive o aclamado Guernica. São pinturas em que o senso estético da variedade das cores e das texturas põe-se a serviço de uma poesia visual de grande inventividade. Um quadro como Menina diante do espelho, revela toda a gama de recursos estilísticos do pintor, em uma cena de jovialidade. Em outros quadros, como a Mulher chorando, utiliza-se da mesma inventividade para produzir testemunho trágico da tristeza.

Três dançarinas

Esta tela representa um momento de virada no estilo de Picasso. Desde a segunda década do século ele vinha produzindo em dois estilos totalmente distintos: ora pinturas cubistas, utilizando todo o repertório estilístico que havia desenvolvido, ora pinturas clássicas, dentro da mais helenística das tradições. (Na ilustração à esquerda, As três dançarinas (A dança), 1925, 215x142 cm, óleo sobre tela, Tate Gallery, Londres).
Com as Três dançarinas, ele realiza uma síntese dos dois estilos. Depois dela - 1925 - esta síntese vai se tornar a norma de sua arte. Estruturalmente a tela emprega as qualificações cubistas, inclusive as texturas imitando colagens de materiais, tais como no papel deparede. Já a anatomia das figuras sucumbe diante da extrema inventividade do artista. A matéria dos corpos funde-se com a matéria das paredes, dos batentes, das janelas. Seios viram olhos, sombras adquirem vida. O fundo irrompe sobre as figuras, tornando as figuras grotescas, mas de uma alegria vibrante e efusiva. é uma tela talvez mais selvagem e agressiva que o Demoiselles d'Avignon.

Menina diante do espelho

O motivo do espelho é talvez dos mais recorrentes na história da pintura. Seja através dos auto-retratos realizados pelos artistas (onde o espelho está implícito) até em obras como o Narciso, de Caravaggio, ou o Casal Arnolfini de Van Eyck, ou mesmo Las Meninas de Velázquez - tão admirado por Picasso -, obras onde o espelho é parte fundamental da narrativa. (Na ilustração à direita, Menina diante do espelho, 1932,  162,3x130,2 cm, óleo sobre tela, The Museum of Modern Art (MoMA)).
Nesta obra, Picasso converte o corpo humano em um arabesco, um ornamento. Embora sugira de longe a anatomia humana, especialmente no perfil do rosto da menina, todo o resto da pintura é um inventar com formas, tópico desta fase do artista. Os seios e as nádegas surgem como elementos eróticos em um universo onde predominam as curvas e as esferas. A extrema riqueza das texturas e das cores torna a obra radiante.

Mulher que chora

Esta é uma obra contemporânea do painel Guernica. É mais uma demonstração da genialidade do artista em converter a realidade em sua criação, como se fora um xamã. Os olhos da figura, por exemplo, parecem pequenas vasilhas que derramam grossas lágrimas sobre o lenço transparente. (Na ilustração à esquerda, A mulher que chora, 1937-10-26, 60x49 cm., óleo sobre tela, Tate Gallery, Londres).

Guernica

Picasso pinta esta obra em 1937, para o pavilhão da República Espanhola na Exposição Internacional de Paris. É inspirado no bombardeio de Guernica, a cidade que fora um dia capital do país basco. O bombardeio fora uma demonstração das letais técnicas bélicas nazistas sobre uma população indefesa. é uma tela enorme (7 metros e 82 centímetros de largura por 3 metros e 50 centímetros de altura). Nela está representada a brutalidade em sua forma mais anímica. (Na ilustração à direita,Guernica, 1937, óleo sobre tela, 349,3x776,6 cm, Museu Nacional de Arte Reina Sofia, Madrid). Para ver detalhes deste painel, clique aqui.
A força agressiva desmesurada é representada por um touro que atravessou a tela vindo desde a direita, destruindo tudo à sua frente, e que agora pára, à esquerda, de boca aberta, cauda empinada, para contemplar o resultado de sua ação. O rastro da catástrofe se espalha pelo seu caminho. A figura à direita, braços abertos para o ar, grita pela dor do impacto. Outra figura se agacha para fugir, os olhos arregalados acompanhando o movimento da fúria. Um cavalo grita sua própria morte, ao centro, o ventre rasgado por uma terrível chaga aberta. Pedaços de um corpo se espalham pelo chão, a mão empunhando o que restou de uma espada, a cabeça com os olhos vazios, sem vida. À extrema esquerda uma das figuras mais trágicas. Uma mulher segura ao colo o filho cujo corpo pende, inerte. O grito da dor da perda soma-se ao terror da expectativa do ataque do touro que, parece, agora vai investir contra ela. Acima, uma figura assiste a tudo, olhos arregalados, boca aberta, segurando um lampião, apesar da luz acesa. Alguns críticos associam esta personagem à Estátua da Liberdade, em Nova York, uma metáfora dos Estados Unidos da América.

As releituras

Se não bastassem tantas dicotomias nesta personalidade tão multiforme quanto genial, Picasso vai homenagear seus heróis da pintura em uma série de releituras que faz de suas obras-primas. Talvez o artista mais criativo do século, Picasso não teme debruçar-se sobre Velázquez, sobre Delacroix, sobre Manet, entre tantos outros, para reverenciá-los reinterpretando suas obras magistrais. Tem séries de obras baseadas no gigantesco Las meninas de Velázquez. A infanta Margarida lá está, o clima está lá, a composição lembra o original, mas a personalidade do mestre catalão a tudo transforma, assimilando-os a seu caudal inventivo.

  • Velazquez, Las meninas
    1656-7, óleo sobre tal, 318x276 cm, Museu do Prado, Madrid

  • Picasso, 1957-08-17, Las Meninas (Velazquez)
    194x260 cm, óleo sobre tela, Museu Picasso
© Texto de João Werner

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